sábado, 12 de novembro de 2011

Sobre a chuva que não caiu


Hoje foi um daqueles dias vazios em que a tarde passou sob meus olhos vagabundeando.
Conversas soltas na calçada sobre a lua, o sol, o tempo, o beija-flor, sobre o olhar perdido.
Perdi meu ônibus, como das outras vezes, eu disse, ele diria.
Ele diria também, pediria que eu ficasse e eu ficaria, se me fosse permitido, seu eu tivesse lutado e conquistado aquele direito, mas não lutei e não houve derramamento de sangue. A tarde era calma demais para isso.
A minha cabeça girava em torno de uma música vadia, ruim e vulgar. Ele beijava meu ombro exposto, eu queria sair e ganhar meu pedaço de mundo.
Na verdade, queria somente uma calçada sombreada e algumas gotas de chuva naquele momento, meu mundo poderia se resumir a isso. Sem o alcool de sempre e os poemas exalados com a fumaça. Chuva. Somente chuva grossa, daquelas que começam caindo vergonhosamente. Uma chuva que me despisse das impurezas desse ano que começavam já a machucar meus ombros. Uma chuva que levasse pelas enchurradas meus sonhos e planos para o futuro e que com eles causasse inundações, já que são tantos.
Era somente isso que queria eu naquela tarde, que por mim passou vagabundeando.  

O Impacto de Copacabana


Os prédios que arranham os céus das metrópoles
Não nos diz nada sobre elas.
As ruas escuras, claras e escuras por onde passam apressadas
As formigas humanas rumo à redenção,
Não passam de um palco sujo, talvez passarela imunda
Onde a vida verdadeiramente acontece – e essa poderia ser uma pergunta.
Nessas ruas, nessas praças, nesses prédios - construídos quase como uma afronta à paisagem natural
Os mendigos comem, dormem. Os executivos jogam seus papéis de bala,
As prostitutas ganham a vida. O viciado vende a sua (vida).
Nessas ruas, de passagem, encontros acontecem com a velocidade de um míssil.
E pode ser que encontros simplesmente não aconteçam.

...

Certo dia me lembrei, sentada no chão do meu quarto, olhando pela janela o pedaço azul recortado de céu, de um velho conto, uma velha história sobre insetos. Coincidentemente, naquela noite, a mesma lembrança me trouxe uma estranha sensação de fraqueza, que me fez adormecer paulatinamente, como se algo me enebriasse.
Rápido o sonho veio e encontrou desprevenido meu subconsciente. Deitada em minha cama, eu era devorada por formigas carnívoras. Pequeninas, eram milhões, comiam vagarosamente minhas asas que sangravam um líquido azul. As paredes do quarto eram assustadoramente altas e extensas, como prédios de vinte andares.
Eu, envolta por formigas, caminhava pelo quarto proferindo palavras, fortes palavras, que exigiam o esforço de um tossir. A cada palavra, formigas eram expelidas para longe, manchando as gigatescas paredes, desenhando formas abstratas pelos cantos, pelas gretas, pelos poros dos tijolos.
Não doía a corrosão de cada camada de pele, de cada camada de penas das minhas asas. Corroíam cada parte do meu corpo, transformando-me em um ser à flor da pele, sem rosto, sem traços, sem feições que me distinguissem. As palavras não cessavam de sujar as paredes, formas estranhas e aleatórias eram criadas pelo meu subconsciente expelido.
Eu queria parar. Este processo, contudo, não dependia de mim. Não me dóia, nem incomodavam as pequenas formigas. Era se como cada um daqueles insetos correspondessem a uma ligação neural, a cada transmissão nervosa que no meu cérebro acontecia a cada milésimo de segundo. Me consumiam. Desse sonho eu jamais despertei, acordada, sou escrava do meu subconsciente.

Ensaio de um conto – porque não sei escrever frases longas

Aquele dia começou com um estalido. Clarice acordou então, olhando ao seu redor. A cama vazia, garrafas vazias, cigarros e a certeza de que a noite fora longa e de que algo realmente ocorrera.  Algo inesperado que talvez pudesse acabar com aquela sensação que há tempos vinha sentindo, a sensação de que poderia cometer suicídio a qualquer momento.
Na noite anterior, lembrava-se, descobrira que não sabia escrever contos ou coisas que precisassem de longas explicações, em linhas mais longas ainda. Era de frases curtas. Seu companheiro (ou seria companheira?) teria lhe dito algo assim, antes que as luzes se apagassem.
Aquele novo dia, que surgia como um poema que se desenrola com o vento, trazia uma certeza ínfima de que cada coisa estaria em seu lugar. Os vasos de flores, a cama do gato, a mesa e as cadeiras, assim como o violão, encostado na parede do quarto. Era, contudo, uma certeza, a primeira nos últimos meses.
Resolveu se despir para um banho e sair de casa. O dia prometia grandes surpresas. Escolheu um vestido azul, nunca antes usado, que ganhara de aniversário de uma tia distante. Calçou sua sapatilha preferida, perfumou-se e saiu.
Como nos contos que nunca escrevera, Clarice jamais voltou. Não precisava mais daquela vida em que as coisas repentinamente haviam voltado para seus devidos lugares. Como em seus poemas, curtos, simples e carregados de uma objetividade que chegava à incompreensão, Clarice atravessara a rua e ali, as coisas simplesmente se concluíram. Seu dia não havia começado com um estalido? Ou era aquele o fim?